quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O Renascimento na Inglaterra

Na Inglaterra, mais especificamente, a Renascença é datada junto ao surgimento da Dinastia Tudor e tem como auge a Era Elisabetana na segunda metade do século XVI. Para aqueles que desejarem se aprofundar no conceito de Renascimento, acessem nossa página http://litrenascoconceito.blogspot.com.br/ e vocês poderão se familiarizar com conceitos sobre sinceridade e prudência, mais explicações acerca da “descoberta do indivíduo”, modelagem e self-fashioning etc.

Um importante elemento analítico para compreendermos o Período Elisabetano é analisá-lo por meio do conceito de soberania. Portanto, cabe aqui uma breve definição deste conceito de acordo com a Enciclopédia de Filosofia de Stanford:
“Embora os significados de soberania tenham variado ao longo da História, há uma ideia primordial, autoridade suprema dentro de um território. É uma noção moderna de autoridade política. Suas variáveis históricas podem ser entendidas através de 3 vertentes – aquele que detém a soberania, a noção absoluta de soberania e as dimensões internas e externas de soberania.  O estado é a instituição política na qual a soberania está incorporada. Um grupo de estados forma um sistema de estados soberanos.” (tradução livre) https://plato.stanford.edu/entries/sovereignty/

No período Elisabetano, a figura que detinha maior autoridade dentro de um território era a rainha Elizabeth e podemos ver isto na poesia, uma vez que a própria rainha, em muitos poemas escritos por ela mesma, construía a sua imagem soberana através de sua associação com a dama petrarquista e, a partir desta construção, outras artes exaltando-a como soberana começaram a ser produzidas relacionando a rainha ao mesmo ideal da dama petrarquista, Laura, como podemos ver seguir:
Imagem retirada de L. Forster, The Political Petrarchism of the Virgin Queen. The Icy Fire. Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.

Gian Giorgio Trissino, ao descrever a imagem de Laura presente no Canzoniere de Petrarca, vê este como um pintor, que dá a cor ao cabelo de Laura que brilha mais que o ouro, que cria seu rosto branco como a neve, que descreve seus lábios vermelhos como a rosa, suas sobrancelhas negras como o ébano, seus olhos doces e gentis como duas estrelas que tem algo dentro deles que são capazes de transformar a noite em luz, o dia em trevas, o mel amargo e podem adoçar o absinto.  Como dito anteriormente, a maneira em que a Rainha Elizabeth I é apresentada na literatura lembra a descrição da dama petrarquista e ela se utiliza disto para afirmar como soberana. Abaixo podemos ver um retrato da Rainha:




The Plimpton Sieve Portrait”, 1579. (O Retrato da Peneira Plimpton, 1579.)
Atribuído a George Gower.
© Folger Shakespeare Libraby.

Neste retrato podemos observar a beleza da Rainha, seus cabelos dourados meio avermelhados, suas mãos compridas e bonitas, sua pele branca como a neve, seus lábios avermelhados etc. Todos estes atributos lembram a dama Petrarquista e a Rainha preenche o estereótipo do ícone literário de Petrarca, assim como sua castidade e pureza (representadas pela peneira que ela carrega sem derrubar uma gota d’água) que a tornam adorada, porém inalcançável aos seus admiradores.

Referências:

Enciclopédia de Filosofia de Stanford (Conceito de soberania) Anthology of English Literature


FORSTER, Leonard. The Petrarchan Manner. The Icy Fire. 
Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.

FORSTER, Leonard. The Political Petrarchism of the Virgin Queen. The Icy Fire. Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.

LUMINARIUM: Anthology of English Literature 
http://www.luminarium.org/renlit/elizface2.htm


WIKIPEDIA, O Retrato da Peneira de Plimpton, 1579. 
https://en.wikipedia.org/wiki/Plimpton_Sieve_Portrait_of_Queen_Elizabeth_I

Soberania e Petrarquismo

É importante falar sobre o Petrarquismo e suas características, pois a literatura foi amplamente utilizada no período Elisabetano para servir a propósitos políticos. Um poema de Petrarca poderia ser parodiado ou adaptado para fins políticos se ele fosse amplamente conhecido e a rainha utilizou o ícone da lírica Petrarquista, Laura, como uma forma de se modelar e se projetar como uma mulher apaixonante e desejável, contudo, inatingível.

 Petrarquismo, que significa “produzir atividade na literatura ou arte ou música sob influência direta ou indireta de Petrarca, expressão de admiração por ele e seus estudos e influências” (A General Survey of Renaissance Petrarchism, Ernest H. Wilkins) estava presente na poesia, como veremos mais a frente.

Em seu livro The Icy Fire: Five Studies in  European Petrarchism, Leonard Forster discorre sobre a importância e influência de Petrarca na poesia, especialmente nos séculos XV e XVI, e como seu modelo, tanto sobre o amor, quanto sobre a dama e também sobre a forma do soneto se espalharam pela Europa.
O ideal da dama petrarquista mostra a amada como uma mistress que tem poder total sobre o amante e se estabelece, assim, uma relação similar à vassalagem, na qual o amante é completamente submisso à dama. A salamandra de Petrarca, que queima e é fria fazendo seus amantes sofrerem está representada no poema. 

O eu-lírico  Petrarquista variava entre cortejo e adoração, mas ele amava Laura por ela ser uma mulher real cuja beleza o intoxicava e cuja presença o excitava, por isso ele sempre louvava seus atributos físicos – cabelos, olhos, pele etc. – e ela representava perfeição física e espiritual. Ainda assim, o amor não era propriamente uma virtude, pois ele entendia que amor significa paixão e esta é pecaminosa.
Uma característica fundamental da poesia petrarquista é a melancolia e a resignação e esse estado de espírito pode ser caracterizado pelo paradoxo de Petrarca dolendi voluptas, que é o prazer na dor.


É importante observar como a rainha é retratada na literatura, pois muitas vezes ela é a personificação do ícone literário que representa a convenção Petrarquista, Laura. Não só a rainha se parece com Laura, como ela própria se utiliza da imagem da dama petrarquista para confirmar o ideal da dama que a rainha estava tentando incorporar. 

O poema abaixo The Ocean to Cynthia, foi escrito por Sir Walter Raleigh, que era cortesão da côrte de Elizabete, chamado de “The Ocean Sheperd” por Edmund Spenser. Após este título, o próprio Raleigh passou a se chamar de Ocean e esta nomenclatura provavelmente se deve ao fato de Raleigh ter sido um explorador/aventureiro/viajante, além de cortesão. 

Sir Walter Ralegh (Raleigh)
by Unknown English artist

oil on panel, 1588
36 in. x 29 3/8 in. (914 mm x 746 mm)
Purchased, 1857


Cynthia pode ser   um   sinônimo  para   Ártemis   (devido  ao  monte   Cynthus   em Delos). Ártemis era a mais venerada das deusas gregas, conhecida por deusa das caças (logo corajosa, forte, estratégica), protetora das meninas jovens e da virgindade (ela conquistou muitos homens, porém nunca esteve como nenhum). Além disso, ela era conhecida como a personificação da Lua, que é considerada a representação do feminino por suas fases, mutabilidade que está relacionada ao lado emocional, principalmente na Idade média – enquanto isso, o homem é o sol, central e poderoso. 
Dadas estas informações, é importante notar a extrema dualidade de Ártemis, de Cynthia. Estas dualidades são muito similares as atribuídas à rainha, que é chamada Cynthia por Raleigh/eu-lírico. Sendo assim, The Ocean to Cynthia é uma elegia de Raleigh para a rainha.

The Ocean to Cynthia
.     .     .     .     .     .     .     .        
But stay, my thoughts, make end, give fortune way ;
    Harsh is the voice of woe and sorrow's sound ;
Complaints cure not, and tears do but allay
    Griefs for a time, which after more abound.
To seek for moisture in the Arabian sand
    Is but a loss of labor and of rest ;
The links which time did break of hearty bands
Words cannot knit, or wailings make anew.
    Seek not the sun in clouds when it is set.
On highest mountains, where those cedars grew,
    Against whose banks the troubled ocean beat,
And were the marks to find thy hopëd port,
    Into a soil far off themselves remove ;
On Sestos' shore, Leander's late resort,
    Hero hath left no lamp to guide her love.
Thou lookest for light in vain, and storms arise;
    She sleeps thy death that erst thy danger sighed;
Strive then no more, bow down thy weary eyes,
    Eyes which to all these woes thy heart have guided.
She is gone, she is lost, she is found, she is ever fair;
    Sorrow draws weakly where love draws not too;
Woe's cries sound nothing, but only in love's ear.
    Do then by dying what life cannot do.
Unfold thy flocks and leave them to the fields,
    To feed on hills or dales, where likes them best,
Of what the summer or the springtime yields,
    For love and time hath given thee leave to rest.
Thy heart which was their fold, now in decay
    By often storms and winter's many blasts,
All torn and rent becomes misfortune's prey;
    False hope, my shepherd's staff, now age hath brast.
My pipe, which love's own hand gave my desire
    To sing her praises and my woe upon, 
Despair hath often threatened to the fire,
    As vain to keep now all the rest are gone.
Thus home I draw, as death's long night draws on;
    Yet every foot, old thoughts turn back mine eyes;
Constraint me guides, as old age draws a stone
    Against the hill, which over-weighty lies
For feeble arms or wasted strength to move:
    My steps are backward, gazing on my loss,
My mind's affection and my soul's sole love,
    Not mixed with fancy's chaff or fortune's dross.
To God I leave it, who first gave it me,
    And I her gave, and she returned again,
As it was hers; so let His mercies be
    Of my last comforts the essential mean.
But be it so or not, the effects are past;
Her love hath end; my woe must ever last.
(FROM J. HANNAH's Courtly Poets from Raleigh to Montrose, 1870.)

Glossário:

Woe = tristeza profunda
Sorrow =  sentiment de profunda tristeza
Sestos' shore = literal europeu 
Leander =  Protagonista do mito grego "Hero and Leander" - história presente em diversos autores da renascença. 
Cedar = uma árvore alta que nunca perde suas folhas 
Análise do poema 
(from J. HANNAH's Courtly Poets from Raleigh to Montrose, 1870)

Como mencionado anteriormente, The Ocean to Cynthia é Raleigh (Ocean) escrevendo para Cynthia (Elizabete) e o poema é uma elegia à rainha.
Durante todo o poema o eu-lírico manifesta extrema tristeza e afirma que não vale a pena lutar se a amada não está mais ali e esse sofrimento não tende a acabar, pelo contrário, com o tempo ele só aumentará.  
Na 3ª estrofe, o eu-lírico diz para não procurar o sol quando ele já está posto (Cynthia sendo projetada como sol, centro de tudo), ou seja, ele não deve procurá-la, já que ela não está mais disponível. 
Outra imagem interessante é a possível associação da Cynthia com a montanha (alta, poderosa, indestrutível e irremovível), contra a qual os oceanos se chocam (Raleigh se choca) e ela era o seu porto seguro, onde ele encontrava esperança. 


Relação com Petrarca

1)     Descrição metafórica ou associação mitológica

The Ocean to Cynthia

Na convenção Petrarquista, a beleza da dama poderia ser louvada com uma metáfora descritiva ou com uma associação metafórica– Cynthia pode ser um sinônimo para Ártemis, devido ao monte Cynthus em Delos – a fim de expressar o grande impacto dela no eu-lírico.

Outra imagem interessante é a possível associação da Cynthia com a montanha alta, poderosa, indestrutível e irremovível, contra a qual os oceanos se chocam (Raleigh se choca) e que era o porto seguro, onde ele encontrava esperança. (thy hope = esperança).

Words cannot knit, or wailings make anew.
Seek not the sun in clouds when it is set.
On highest mountains, where those cedars grew,
Against whose banks the troubled ocean beat,
And were the marks to find thy hopëd port,

2) A utilização de imagens opostas (paradoxos).

Como já mencionado, uma gama de antíteses podem ser vistas nos poemas de Petrarca, recurso que marca a sua obra, e aqui podemos ver o mesmo acontecendo.

To seek for moisture in the Arabian sand
    Is but a loss of labor and of rest ;
The links which time did break of hearty bands

Aqui este recurso é utilizado argumentando que já não vale mais a pena lutar, só lhe resta sofrer por essa perda e deixar o destino agir. A busca pelo Amor da rainha é uma perda de tempo, assim como buscar água no deserto, uma vez que as ligações desfeitas pelo tempo não podem ser remendadas através de palavras, talvez pelos infindáveis poemas feitos por ele ou através de lamentos.


3) A salamandra de Petrarca

A salamandra de Petrarca que queima e é fria fazendo seus amantes sofrerem está representada no poema. Entende-se que uma vez a dama pareceu estar interessada no eu-lírico, ele se encantou por ela e sofre por não a ter novamente. O par da dama (indiferente x amante) traz a imagem de vassalagem para esta situação em que o homem é um servo eterno, enquanto a dama é superior. A dama Petrarquista é cruel com seus admiradores, assim como a rainha. A dama tinha sua beleza adorada, aqui a rainha tem sua soberania exaltada, pois, sendo a rainha virgem, ela estava muito além do alcance de admiradores comuns. Ela os causava sofrimento, pois eles nunca a teriam.

Thou lookest for light in vain, and storms arise;
She sleeps thy death that erst thy danger sighed;
Strive then no more, bow down thy weary eyes,
Eyes which to all these woes thy heart have guided.

Referências:


FORSTER, Leonard. The Petrarchan Manner. The Icy Fire. Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.

FORSTER, Leonard. The Political Petrarchism of the Virgin Queen. The Icy Fire. Five Studies in European Petrarchism. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.


HANNAH, J., The courtly poets from Raleigh to Montrose, London, Bell and Daldy, 1870.
https://archive.org/details/courtlypoetsfro00wottgoog

INTERNET ARCHIVE


LUMINARIUM: Anthology of English Literature 

NATIONAL PORTRAIT GALLERY

POETRY FOUNDATION
https://www.poetryfoundation.org/poems-and-poets/poets/detail/sir-walter-ralegh


WILKINS, E. H. A General Survey of Renaissance Petrarchism. ... Baldensperger and W. P. Friederich, Bibliography of Comparative Literature, Chapel Hill, 1950.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O código de vestimenta da corte

        Em 1577, Elizabeth estabeleceu um código de vestimenta para os membros da corte através de um manuscrito que impunha aos seus componentes uma determinada forma de se vestir, a fim de enquadrá-los na manutenção hierárquica da corte. Esta manutenção hierárquica que pretendia enquadrar os indivíduos em um específico ranqueamento social atuava sobre a vida de cada membro da corte. Assim, as vestimentas utilizadas eram determinadas pelo título de nobreza de cada um.  
De acordo com a lei, títulos de nobreza específicos tinham tecidos específicos atribuídos de acordo com a hierarquia estabelecida naquela sociedade. Desta forma, por exemplo, os únicos membros que poderiam utilizar livremente tecido de lã eram duques, marqueses, condes e seus filhos. Ainda assim, as cores adotadas eram determinadas pelo código e no caso destes membros eram tons azuis mistos ao vermelho. Portanto, podemos perceber o grau de normatividade que esta lei prescrevia aos membros da corte.  
Como forma de diferenciação hierárquica, apenas a rainha, o rei e os membros mais altos da classe aristocrática poderiam vestir seda na cor roxa e utilizar tecidos dourados ou peles. Inclusive, os membros mais importantes da corte foram os primeiros a adotar a lei estabelecida pelo código de vestimenta da rainha a fim de servirem de exemplo para toda a sociedade.
É importante também compreender as motivações implicadas na criação deste código de vestimenta, visto que a rainha possui certas preocupações econômicas e políticas. Em contraste a sociedade capitalista atual, este governo quinhentista recomendava explicitamente o uso econômico equilibrado e parcimonioso, uma vez que a rainha considerava extravagantes e desnecessários os gastos de seus súditos com importação de roupas estrangeiras. Podemos, então, perceber que esta preocupação na forma de governar fez com que a rainha tomasse certas medidas, como o estabelecimento do código de vestimenta, que inclusive é introduzido por um aviso contra o uso excessivo de vestuário.
Ao impor sua decisão soberana, a rainha conseguiu conter os gastos abundantes e ainda estabeleceu um sistema de distinção entre os diferentes estratos da sociedade de corte, com pena de multa para quem a desobedecesse. Logo, percebemos que a partir da postulação de leis, como o código de vestimenta, e outras estratégias políticas tornavam seu comando legítimo do ponto de vista de uma soberania. Como autoridade suprema, a rainha precisava expressar controle e confiança de seu povo e de seu território, assim como foi feito no Discurso de Tilbury que discutiremos posteriormente.

Autor desconhecido

Pintado por volta de 1600, o retrato relata a coroação de Elizabeth I. Esta obra não possui um autor conhecido mas seria uma cópia de um original agora perdido. Elizabeth I subiu ao trono da Inglaterra em 1558, e foi coroada em 1559 com vinte e seis anos. A Rainha usava seus cabelos soltos sobre os ombros, como era típico de uma rainha em sua coroação. Os robes dourados de coroação é feito em arminho, pele que o código de vestimenta ditava que era para ser usada somente pela realeza. Elizabeth tem sua vestimenta decorada com rosas Tudor e flor-delis 




                                   Manuscrito do código de vestimenta da corte, 1577.


                                                     1585, por Nicholas Hilliard 
 Esta pintura foi feita pouco antes expedição do conde de Leicester para os países baixos. Uma das interpretações desta imagem é que a companhia de um arminho era símbolo de realeza, assim como o uso da majestosa coroa, das cores escuras com dourado e das famosas jóias conhecidas como ''Three Brother's jewel'' - uma joia preciosa composta por três diamantes. 

Referências: 

Manuscrito e transcrição do código de vestimenta: 



Discurso de Tilbury




Segundo Ernst Kantorowicz, em sua obra “Os dois corpos do Rei (1957)”, baseado nas divisões do corpo de Cristo, uma nova concepção de autoridade nasceu da imagem do corpo do Rei. Esta concepção indica que o corpo do Rei, bem como o de Cristo, são compostos por duas dimensões: o corpo físico/mortal/natural dele - este corpo morre com o próprio Rei; e uma segunda, que é o corpo sobrenatural/místico do Rei - este corpo não pode ser destruído por ser uma representação de um corpo político e, mais do que isso, de um corpo que detém soberania.



Para ter soberania, um Rei precisa de autoridade. Segundo o filósofo R.P Wolff, autoridade é "o direito de comandar e correlativamente o direito de ser obedecido"(tradução livre). Em segundo lugar o Rei necessita de um território. Portanto, apesar das muitas variações ao longo da história, este é conceito central de soberania: autoridade suprema dentro de um território. Portanto, os territórios, bem como uma série de interesses em comuns serão governados por uma autoridade que representa, na verdade, uma entidade - a entidade do corpo sobrenatural de Rei, definida por vontade divina.
Em 1588, a rainha Elizabeth dá um discurso às tropas inglesas em Tilbury para encorajar a vitória na batalha - supostamente, ela veste armaduras e está montada em um cavalo. A inserção da armadura pode ter várias interpretações. Aqui, é possível perceber que há um contraste com o corpo frágil de mulher. Ou seja, o corpo físico do Rainha protegido pelo corpo forte da autoridade. Para ressaltar, ou relembrar, sua autoridade, ela invoca Deus, relembrando que apesar de sua fragilidade, ela possui o direito divino sobre aquele território e povo.
O discurso:


Speech by Elizabeth I
In present day English:
My loving people,
We have been persuaded by some that are careful of our safety, to take heed how we commit our selves to armed multitudes, for fear of treachery; but I assure you I do not desire to live to distrust my faithful and loving people. Let tyrants fear. I have always so behaved myself that, under God, I have placed my chiefest strength and safeguard in the loyal hearts and good-will of my subjects; and therefore I am come amongst you, as you see, at this time, not for my recreation and disport, but being resolved, in the midst and heat of the battle, to live and die amongst you all; to lay down for my God, and for my kingdom, and my people, my honour and my blood, even in the dust.
I know I have the body but of a weak and feeble woman; but I have the heart and stomach of a king, and of a king of England too, and think foul scorn that Parma or Spain, or any prince of Europe, should dare to invade the borders of my realm: to which rather than any dishonour shall grow by me, I myself will take up arms, I myself will be your general, judge, and rewarder of every one of your virtues in the field.
I know already, for your forwardness you have deserved rewards and crowns; and We do assure you in the word of a prince, they shall be duly paid you. In the mean time, my lieutenant general shall be in my stead, than whom never prince commanded a more noble or worthy subject; not doubting but by your obedience to my general, by your concord in the camp, and your valour in the field, we shall shortly have a famous victory over those enemies of my God, of my kingdom, and of my people.


A primeira parte do discurso se inicia com a Rainha manifestando ter confiança em seu povo estando entre eles ( therefore I am come amongst you, as you see,), apesar de ter sido aconselhada a fazer o oposto por questões de segurança. Ela prossegue reafirmando sua confiança em seu povo, mas pela primeira vez ela chama Deus não só por ser a testemunha máxima (under God) de seu poder divino, mas também para testemunhar os atos que ela pretendia tomar. Então, diante deste Deus, ela afirma estar disposta a morrer no meio de seu povo no campo de batalha pelo seu Deus, seu reino e seu povo, sua honra e seu sangue (to lay down for my God, and for my kingdom, and my people, my honour and my blood,).


No segundo parágrafo, uma das passagens mais importantes do discurso e que condiz com o que foi mencionado nos parágrafos anteriores (I know I have the body but of a weak and feeble woman; but I have the heart and stomach of a king, and of a king of England too,). Neste trecho, ela separa seu corpo físico e frágil de mulher do corpo do sobrenatural e que representa a autoridade; um corpo que não só nunca morrerá, mas que também detém, como autoridade suprema, o controle e confiança de seu povo e de seu território (and think foul scorn that Parma or Spain, or any prince of Europe, should dare to invade the borders of my realm: to which rather than any dishonour shall grow by me, I myself will take up arms, I myself will be your general, judge, and rewarder of every one of your virtues in the field). Território este que possui um papel de extrema importância para quem governa, pois sem território não há como exercer sua autoridade. Similarmente, como mencionado no trecho acima do discurso, a invasão de um território em qualquer época indica falta de reconhecimento e respeito à um território soberano. Tendo isso tudo em vista, a invasão dos espanhóis representa uma desonra (a maior de todas) para ela e seu povo e que a rainha se recusa a tolerar.


Novamente representando a figura mística de Rei nesse trecho (I myself will take up arms, I myself will be your general, judge, and rewarder of every one of your virtues in the field.), a rainha une sua imagem frágil, bem como a do exército, justiça e benfeitora tudo nessa imagem do Rei. No último parágrafo, ela reforça seu papel como benfeitora do povo e também  como uma pessoa que transpassa calma para os que estão prestes a combater - e possivelmente morrer - em batalha. Ela, em toda sua autoridade, eleva os combatentes (for your forwardness you have deserved rewards and crowns), colocando-os em um status mais privilegiado. Ao final, ela repassa seu direito de comando para seu tenente liderar o exército e por último, novamente unifica Deus, reino (território) e povo diante de sua imagem como Rei.


Por fim, vemos que o Rei não é apenas a figura mortal que governa por causa de seu sangue, mas representa algo muito além: o Rei sobrenatural, escolhido por uma figura maior, Deus, que detém o direito de governar sobre o território e aqueles que ali habitam. A invasão desse território representa um golpe e até mesmo humilhação na autoridade desse Rei sobrenatural. Em vários momentos em seu discurso, ela unifica a imagem do reino, povo e religião (um dos fatores da batalha contra a espanha; ela havia rejeitado o catolicismo) perante sua imagem de Rei. A vitória na batalha representou um dos maiores feitos do exército inglês e viria marcar esse discurso como sendo um dos momentos de maior orgulho e nacionalismo do país.


Referências:
(https://plato.stanford.edu/entries/sovereignty/)
discurso tirado da British Library