terça-feira, 20 de dezembro de 2016



Discurso de Tilbury




Segundo Ernst Kantorowicz, em sua obra “Os dois corpos do Rei (1957)”, baseado nas divisões do corpo de Cristo, uma nova concepção de autoridade nasceu da imagem do corpo do Rei. Esta concepção indica que o corpo do Rei, bem como o de Cristo, são compostos por duas dimensões: o corpo físico/mortal/natural dele - este corpo morre com o próprio Rei; e uma segunda, que é o corpo sobrenatural/místico do Rei - este corpo não pode ser destruído por ser uma representação de um corpo político e, mais do que isso, de um corpo que detém soberania.



Para ter soberania, um Rei precisa de autoridade. Segundo o filósofo R.P Wolff, autoridade é "o direito de comandar e correlativamente o direito de ser obedecido"(tradução livre). Em segundo lugar o Rei necessita de um território. Portanto, apesar das muitas variações ao longo da história, este é conceito central de soberania: autoridade suprema dentro de um território. Portanto, os territórios, bem como uma série de interesses em comuns serão governados por uma autoridade que representa, na verdade, uma entidade - a entidade do corpo sobrenatural de Rei, definida por vontade divina.
Em 1588, a rainha Elizabeth dá um discurso às tropas inglesas em Tilbury para encorajar a vitória na batalha - supostamente, ela veste armaduras e está montada em um cavalo. A inserção da armadura pode ter várias interpretações. Aqui, é possível perceber que há um contraste com o corpo frágil de mulher. Ou seja, o corpo físico do Rainha protegido pelo corpo forte da autoridade. Para ressaltar, ou relembrar, sua autoridade, ela invoca Deus, relembrando que apesar de sua fragilidade, ela possui o direito divino sobre aquele território e povo.
O discurso:


Speech by Elizabeth I
In present day English:
My loving people,
We have been persuaded by some that are careful of our safety, to take heed how we commit our selves to armed multitudes, for fear of treachery; but I assure you I do not desire to live to distrust my faithful and loving people. Let tyrants fear. I have always so behaved myself that, under God, I have placed my chiefest strength and safeguard in the loyal hearts and good-will of my subjects; and therefore I am come amongst you, as you see, at this time, not for my recreation and disport, but being resolved, in the midst and heat of the battle, to live and die amongst you all; to lay down for my God, and for my kingdom, and my people, my honour and my blood, even in the dust.
I know I have the body but of a weak and feeble woman; but I have the heart and stomach of a king, and of a king of England too, and think foul scorn that Parma or Spain, or any prince of Europe, should dare to invade the borders of my realm: to which rather than any dishonour shall grow by me, I myself will take up arms, I myself will be your general, judge, and rewarder of every one of your virtues in the field.
I know already, for your forwardness you have deserved rewards and crowns; and We do assure you in the word of a prince, they shall be duly paid you. In the mean time, my lieutenant general shall be in my stead, than whom never prince commanded a more noble or worthy subject; not doubting but by your obedience to my general, by your concord in the camp, and your valour in the field, we shall shortly have a famous victory over those enemies of my God, of my kingdom, and of my people.


A primeira parte do discurso se inicia com a Rainha manifestando ter confiança em seu povo estando entre eles ( therefore I am come amongst you, as you see,), apesar de ter sido aconselhada a fazer o oposto por questões de segurança. Ela prossegue reafirmando sua confiança em seu povo, mas pela primeira vez ela chama Deus não só por ser a testemunha máxima (under God) de seu poder divino, mas também para testemunhar os atos que ela pretendia tomar. Então, diante deste Deus, ela afirma estar disposta a morrer no meio de seu povo no campo de batalha pelo seu Deus, seu reino e seu povo, sua honra e seu sangue (to lay down for my God, and for my kingdom, and my people, my honour and my blood,).


No segundo parágrafo, uma das passagens mais importantes do discurso e que condiz com o que foi mencionado nos parágrafos anteriores (I know I have the body but of a weak and feeble woman; but I have the heart and stomach of a king, and of a king of England too,). Neste trecho, ela separa seu corpo físico e frágil de mulher do corpo do sobrenatural e que representa a autoridade; um corpo que não só nunca morrerá, mas que também detém, como autoridade suprema, o controle e confiança de seu povo e de seu território (and think foul scorn that Parma or Spain, or any prince of Europe, should dare to invade the borders of my realm: to which rather than any dishonour shall grow by me, I myself will take up arms, I myself will be your general, judge, and rewarder of every one of your virtues in the field). Território este que possui um papel de extrema importância para quem governa, pois sem território não há como exercer sua autoridade. Similarmente, como mencionado no trecho acima do discurso, a invasão de um território em qualquer época indica falta de reconhecimento e respeito à um território soberano. Tendo isso tudo em vista, a invasão dos espanhóis representa uma desonra (a maior de todas) para ela e seu povo e que a rainha se recusa a tolerar.


Novamente representando a figura mística de Rei nesse trecho (I myself will take up arms, I myself will be your general, judge, and rewarder of every one of your virtues in the field.), a rainha une sua imagem frágil, bem como a do exército, justiça e benfeitora tudo nessa imagem do Rei. No último parágrafo, ela reforça seu papel como benfeitora do povo e também  como uma pessoa que transpassa calma para os que estão prestes a combater - e possivelmente morrer - em batalha. Ela, em toda sua autoridade, eleva os combatentes (for your forwardness you have deserved rewards and crowns), colocando-os em um status mais privilegiado. Ao final, ela repassa seu direito de comando para seu tenente liderar o exército e por último, novamente unifica Deus, reino (território) e povo diante de sua imagem como Rei.


Por fim, vemos que o Rei não é apenas a figura mortal que governa por causa de seu sangue, mas representa algo muito além: o Rei sobrenatural, escolhido por uma figura maior, Deus, que detém o direito de governar sobre o território e aqueles que ali habitam. A invasão desse território representa um golpe e até mesmo humilhação na autoridade desse Rei sobrenatural. Em vários momentos em seu discurso, ela unifica a imagem do reino, povo e religião (um dos fatores da batalha contra a espanha; ela havia rejeitado o catolicismo) perante sua imagem de Rei. A vitória na batalha representou um dos maiores feitos do exército inglês e viria marcar esse discurso como sendo um dos momentos de maior orgulho e nacionalismo do país.


Referências:
(https://plato.stanford.edu/entries/sovereignty/)
discurso tirado da British Library

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